quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

SAIU A PRIMEIRA CRÍTICA!!!

Olha só, alguém enfim metendo a boca na nossa revista. 

Quem perdeu esse tempão - vinte minutos? trinta? - foi o Peixe, camarada do famoso samba do Souza, que acontece em lugares obscuros de Campinas. 

Ele escreveu sobre a Miséria número 2 - a da capa com o velho solitário sentado no banco - que foi rodada e vendida antes da número 1.

O debate que se seguiu será publicado em breve nesse blog. As fotos da discussão, da pancadaria e do final feliz (ninguém morreu nessa empreitada) também mostraremos algum dia.

A estética da Miséria
Autocrítica
Meu bom Doutor o morro é pobre
e a pobreza não é vista com franqueza
nos olhos desse pessoal intelectual.”
Bezerra da Silva

Num país como o Brasil, que nunca conseguiu resolver questões elementares para a superação da miséria, não provoca espanto o fato de que ela – a miséria – seja apresentada como natural. Primeiramente por aqueles que a fabricam mas também – talvez principalmente – por aqueles que, ao sentir – na pele, no estômago, nos músculos (?) – sua dureza, a ela acabam se acomodando de tal maneira que acabam por reproduzir sua ideologia.
E para provar – caso fosse necessário – que nada há de natural nisso tudo, observemos como são diferentes entre si três das muitas possíveis concepções de miséria. Não percamos tempo com a maneira mais baixa de apresentação da miséria que é sua transformação em espetáculo se valendo de sua dimensão mais superficial – a violência na forma mais bruta do termo – sob a desculpa de um suposto realismo, como foi feito – sob o selo “para exportação” – com as desgraças da “Cidade de Deus”. Serve para nada senão para movimentar ainda mais a máquina de dinheiro e ideologias outrora dominada por Róle e Ude.
Primeiramente, gostaria de destacar aquela que chamo – de maneira imprecisa, como todas as demais – de “visão romântica” sobre a miséria. Inspiração de gente grande como Gilberto Freire, se baseia numa certa ingenuidade acerca das mazelas daqueles que quanto mais sofrem mais cantam, mais festejam e mais gozam1. Ingenuidade esta que não deixa de estar acompanhada de um peculiar modo de sentir inveja – uma inveja que não se dá pelo objeto, mas pelo comportamento do sujeito frente a ele – como fica claro nas palavras precisas, belas e assumidamente pequeno-burguesas de Chico e Vinícius em “Gente Humilde”:

Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Como um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a tudo
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar


São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um lar
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar

Mas não nos percamos na suposta simplicidade de seus versos; Chico e Vinícius compreendem precisamente os porquês dessa inveja: a capacidade de resistência, de sobrevivência; a capacidade de cantar em tom maior as mais tristes frases; a capacidade que têm os miseráveis de inventar – porque precisam – beleza onde não há.
E não há mesmo. O sorriso é aparente, como não se cansaram de entoar poetas da envergadura de Cartola (“Quem me sorrindo, pensa que estou alegre, mas meu sorriso é por consolação”); Nelson Cavaquinho (“As rugas fizeram residência no meu rosto, não choro pra ninguém me ver sofrer de desgosto”); e, principalmente, Zé Keti (“Pobre nunca teve posto, a tristeza é a sua cicatriz, repare bem que só de vez em quando pobre é feliz”). Nesta visão – a qual chamo “crítica” – o que importa é a luta contra a miséria. É uma revolta contra certa gente nojenta que, sob a indefensável desculpa do elogio à simplicidade do morro, acaba por defender às escondidas o argumento do “deixa eles ali que é só assim que se faz essas coisas bonitas que eles fazem”. E que fique claro:

O morro sorri, a todo momento
O morro sorri, mas chora por dentro
Quem vê o morro sorrindo
pensa que ele é feliz, coitado!
O morro tem sede
O morro tem fome
O morro sou eu o favelado
O morro sou eu o favelado

Por fim temos a visão supostamente desprovida de ideologias, supostamente pura, supostamente realista, uma visão “pessimista”. Como me disse um amigo certa vez “O pessimista é o realista bem informado”. Uma resposta estética que faz mal, que agride o leitor pela aspereza da crítica, que o surpreende pela desilusão, pelo sentimento de que não há saída, pelo colocar das mãos sobre a cabeça que demonstra francamente “fudeu!”. Para ficarmos no samba, sobre a desilusão, eu necessariamente sou remetido ao doce Paulinho da Viola que evidentemente seria um péssimo representante dessa profícua corrente, que carece de algo muito mais ácido para representá-la. Vamos para os quadrinhos – mais próximos, inclusive, do tema que aqui tratamos. A tradição é muito longa, passando por gente do calibre de Jaguar e Henfil, de Edgar Vasques, Angeli e Dahmer. O humor é necessariamente negro. A preocupação com o traço é que ele fique necessariamente “feio”, “sujo”, desajustado. Reitero, a preocupação é agredir “o mundinho pequeno-burguês-babaca-e-moralista-do-leitor-médio”.

Sabe, leitor amigo, eu nunca tinha me incomodado com essa posição política. Muito pelo contrário, sempre fui um grande fã e posso dizer com sinceridade que sou um apreciador aficionado por grande parte dessa gente citada. Mas ontem, quando eu me deparei com o “Miséria” – que, não tenho dúvida, está reivindicando para si mesma esta tradição – algo diferente me incomodou. Não foi a agressão costumeira aos meus modos pequenos-burgueses e cristãos de ver o mundo. Sempre gostei de receber essa agressão. Ela cumpre seu papel, me chamando à realidade. Mas quando me deparei com meus amigos reproduzindo – e muito bem, por sinal, ponto pra eles!!! – essa visão de mundo e, mais ainda, quando conversava com um outro amigo que me confessou que o gibi lhe fez mal justamente pelo sentimento do “não há o que fazer” me vi obrigado a reconsiderar, porque esse do “não há o que fazer” me parece justamente a re-naturalização da miséria pois, ainda que fique claro que existem responsáveis por “toda essa merda que temos aí” e que, portanto, miséria não é natural, o tiro pode sair pela culatra e o efeito da agressão se transformar em ainda mais apatia e sentimento de derrota daqueles que deveriam resistir, sobreviver e lutar contra a miséria. A total contragosto e de maneira inconsciente, temo que meus grandes amigos – críticos sociais de uma agudeza invejável – podem estar fortalecendo a posição política de seus inimigos. Só não me perguntem como superar esse impasse e qual a minha proposta para uma estética da Miséria. “Sei lá! Fudeu!”

Thiago “Peixe” Franco

1Cartola respondeu ao dilema freireano “por que o escravo canta?” de maneira ímpar em “Sala de Recepção”. Um dia escreverei sobre isso

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